[Para Maquiavel], a natureza do homem, na verdade, não produz nem regras comuns nem concórdia: ela submete cada um ao temor dos efeitos das paixões do outro e proíbe, por isso, toda concórdia, toda igualdade e toda liberdade autêntica. Por isso, não pode haver, para os homens, valor senão político: é unindo-se em torno de um sistema de leis e de instituições que protege cada um igualmente contra todos os outros que a liberdade se torna possível e que os homens podem viver em conformidade com a nobreza da sua natureza, que lhes ordena darem eles próprios forma ao seu destino. CANTO-SPERBER, M. Dicionário de ética e filosofia moral. São Leopoldo: Unisinos, 2003. p. 128. v. 2.
Qual é, de acordo com o texto acima, a real tarefa da política para Maquiavel?
Resta-nos, agora, apontar brevemente a influência de Maquiavel na reflexão política contemporânea. O primeiro passo para isso consiste em constatar que sua obra excede em importância a condição que muitas vezes lhe é atribuída de teórico do absolutismo monárquico.
É certo que muitos dos aspectos presentes nos escritos de Maquiavel confluem para as tendências do absolutismo monárquico, bem como para sua preocupação pessoal com a necessidade de unificação política da Itália. No entanto, o termo “príncipe” não remete obrigatoriamente a um monarca, sendo, isto sim, simplesmente a palavra empregada pelo florentino para personificar o poder político. Além disso, o que é mais significativo e pouco conhecido, Maquiavel, em alguns de seus escritos, sinaliza preferência pela forma republicana de governo.
Essa posição, claramente explicitada em sua obra Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio, não é contraditória com o que estudamos até então sobre sua filosofia política; ao contrário, como observaremos em seguida, é a sua confirmação. Segundo Maquiavel, a república é o modo mais estável de governo, porque nela o poder é partilhado por um número maior de pessoas, diminuindo, assim, os riscos de conspiração contra o governo.
Em Discursos, Maquiavel preserva sua concepção de que a política é uma espécie de guerra que se processa pelas vias institucionais, acrescentando, porém, uma nova dimensão à interpretação dos conflitos inerentes à vida em sociedade. Não se trata mais exclusivamente das tensões entre governantes e súditos, mas dos conflitos entre grupos sociais com interesses divergentes.
No que diz respeito ao primeiro elemento, que corresponde ao exame da política em sua efetividade, ainda que as conclusões de Maquiavel sejam passíveis de discussão, inegavelmente o teórico de Florença colocou em relevo os contrastes entre os discursos e as práticas políticas, assim como destacou características do exercício do poder que não podem ser ignoradas pelas investigações políticas atuais. O mesmo devemos dizer da dissociação entre moral e política, pois pode-se discordar de sua definição da natureza humana — aliás, não sustentada filosoficamente por Maquiavel — e de sua afirmação de que nenhuma das ações dos governantes tenham por finalidade exatamente o bem comum, mas não se pode deixar de observar que, ao menos em muitas ocasiões, as ações políticas não incluem valores morais do modo como estes são socialmente apresentados.
Após Maquiavel, a investigação filosófica nessa área do saber tem de, no mínimo, considerar esta questão: a política realmente visa ao bem comum?
Quanto à sua declaração de que a política é uma forma atenuada de guerra, mesmo que não seja integralmente incorporada pelas teorias políticas contemporâneas, realça as relações políticas como um campo permanente de conflitos este é, aliás, um prisma adotado por diferentes linhas de pesquisa das relações políticas na atualidade. Finalmente, há o destaque dado por Maquiavel à necessidade de o governante ser temido para que seu poder seja conservado e ao fato de o temor ser inspirado pela possibilidade do recurso à força. Nesse sentido, a posição maquiaveliana antecipa algo reconhecido quase por unanimidade pelas teorias políticas atuais: o Estado distingue-se de qualquer outra instituição social porque os indivíduos que vivem em seu território estão, queiram ou não, submetidos ao seu poder e, para a vigência desse poder, é legítimo o emprego da repressão. Em outras palavras, democrático ou ditatorial, o Estado possui o monopólio legal da força.
Podemos destacar os seguintes pontos no pensamento político de Maquiavel:
· Com seus escritos, especialmente O príncipe, a política é separada do universo doutrinário cristão, recuperando seu espaço como área autônoma da investigação filosófica.
· Recolocando a política na condição de domínio específico do conhecimento filosófico, sua obra inaugura a filosofia política moderna.
· Ele concebe o propósito principal da política como exercício do poder, ou seja, as medidas políticas são implementadas visando ao alcance do poder pelos governantes e sua permanência a qualquer custo, e não necessariamente ao bem-estar da comunidade.
· As ações políticas eficientes não são ditadas pelas qualidades morais socialmente apreciadas, ou seja, a política não é regulada pelos preceitos éticos vigentes na sociedade. Por esse motivo, costuma-se afirmar que Maquiavel afasta a dimensão política da dimensão moral, ou, o que é mais exato, compreende a política como domínio ético específico, distinto da moralidade prevalecente nas demais relações da vida em sociedade.
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